Um dos princípios fundamentais do direito privado é o da boa-fé
objetiva, cuja função é estabelecer um padrão ético de conduta para as partes
nas relações obrigacionais. No entanto, a boa-fé não se esgota nesse campo do
direito, ecoando por todo o ordenamento jurídico.
“Reconhecer a boa-fé
não é tarefa fácil”, resume o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
Humberto Martins. “Para concluir se o sujeito estava ou não de boa-fé, torna-se
necessário analisar se o seu comportamento foi leal, ético, ou se havia
justificativa amparada no direito”, completa o magistrado.
Mesmo antes
de constar expressamente na legislação brasileira, o princípio da boa-fé
objetiva já vinha sendo utilizado amplamente pela jurisprudência, inclusive do
STJ, para solução de casos em diversos ramos do direito.
A partir do
Código de Defesa do Consumidor, em 1990, a boa-fé foi consagrada no sistema de
direito privado brasileiro como um dos princípios fundamentais das relações de
consumo e como cláusula geral para controle das cláusulas abusivas.
No
Código Civil de 2002 (CC/02), o princípio da boa-fé está expressamente
contemplado. O ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino, presidente da
Terceira Turma, explica que “a boa-fé objetiva constitui um modelo de conduta
social ou um padrão ético de comportamento, que impõe, concretamente, a todo
cidadão que, nas suas relações, atue com honestidade, lealdade e probidade”.
Ele alerta que não se deve confundi-la com a boa-fé subjetiva, que é o
estado de consciência ou a crença do sujeito de estar agindo em conformidade com
as normas do ordenamento jurídico.
Contradição Ao julgar
um recurso especial no ano passado (REsp 1.192.678), a Terceira Turma decidiu
que a assinatura irregular escaneada em uma nota promissória, aposta pelo
próprio emitente, constitui “vício que não pode ser invocado por quem lhe deu
causa”. O emitente sustentava que, para a validade do título, a assinatura
deveria ser de próprio punho, conforme o que determina a legislação.
Por
maioria, a Turma, seguindo o voto do ministro Sanseverino, aplicou o
entendimento segundo o qual “a ninguém é lícito fazer valer um direito em
contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente,
segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé”. É o chamado venire contra factum
proprium (exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento
anterior do exercente).
No caso, o próprio devedor confessou ter lançado
a assinatura viciada na nota promissória. Por isso, a Turma também invocou a
fórmula tu quoque, de modo a impedir que o emitente tivesse êxito mesmo agindo
contra a lei e invocando-a depois em seu benefício (aquele que infringiu uma
regra de conduta não pode postular que se recrimine em outrem o mesmo
comportamento).
Seguro de vidaO STJ já tem jurisprudência
firmada no sentido de que a seguradora não pode extinguir unilateralmente
contrato renovado por vários anos. Num dos casos julgados na Terceira Turma em
2011 (REsp 1.105.483), os ministros entenderam que a iniciativa ofende o
princípio da boa-fé. A empresa havia proposto à consumidora, que tinha o seguro
de vida havia mais de 30 anos, termos mais onerosos para a nova apólice.
Em seu voto, o ministro Massami Uyeda, hoje aposentado, concluiu que a
pretensão da seguradora de modificar abruptamente as condições do contrato, não
renovando o ajuste anterior nas mesmas bases, ofendia os princípios da boa-fé
objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade que devem orientar a
interpretação dos contratos que regulam as relações de consumo.
O
julgamento foi ao encontro de precedente da Segunda Seção (REsp 1.073.595),
relatado pela ministra Nancy Andrighi, em que os ministros definiram que, se o
consumidor contratou ainda jovem o seguro de vida oferecido pela seguradora e o
vínculo vem se renovando ano a ano, o segurado tem o direito de se manter dentro
dos parâmetros estabelecidos, sob o risco de violação ao princípio da boa-fé
objetiva.
Neste caso, a Seção estabeleceu que os aumentos necessários
para o reequilíbrio da carteira têm de ser estabelecidos de maneira suave e
gradual, mediante um cronograma, do qual o segurado tem de ser cientificado
previamente.
SuicídioEm 2011, a Segunda Seção também
definiu que, em caso de suicídio cometido durante os dois primeiros anos de
vigência do contrato de seguro de vida, período de carência, a seguradora só
estará isenta do pagamento se comprovar que o ato foi premeditado (Ag
1.244.022).
De acordo com a tese vencedora, apresentada pelo ministro
Luis Felipe Salomão, o novo Código Civil presume em regra a boa-fé, de forma que
a má-fé é que deve sempre ser comprovada, ônus que cabe à seguradora. No caso
analisado, o contrato de seguro de vida foi firmado menos de dois anos antes do
suicídio do segurado, mas não ficou provado que ele assinara o contrato já com a
intenção de se matar e deixar a indenização para os beneficiários.
Plano de saúde Em outubro do ano passado, a Terceira
Turma apontou ofensa ao princípio da boa-fé objetiva quando o plano de saúde
reajusta mensalidades em razão da morte do cônjuge titular. No caso, a viúva era
pessoa de 77 anos e estava vinculada à seguradora como dependente do marido
fazia mais de 25 anos (AREsp 109.387).
A seguradora apresentou novo
contrato, sob novas condições e novo preço, considerado exorbitante pela idosa.
A sentença, que foi restabelecida pelo STJ, considerou “evidente” que o
comportamento da seguradora feriu o CDC e o postulado da boa-fé objetiva, “que
impõe aos contratantes, desde o aperfeiçoamento do ajuste até sua execução, um
comportamento de lealdade recíproca, de modo a que cada um deles contribua
efetivamente para o atendimento das legítimas expectativas do outro, sem causar
lesão ou impingir desvantagem excessiva”.
Em precedente (Ag 1.378.703),
a Terceira Turma já havia se posicionado no mesmo sentido. Na ocasião, a
ministra Nancy Andrighi afirmou que, se uma pessoa contribui para um
seguro-saúde por longo tempo, durante toda a sua juventude, colaborando sempre
para o equilíbrio da carteira, não é razoável, do ponto de vista jurídico,
social e moral, que em idade avançada ela seja tratada como novo consumidor.
“Tal postura é flagrantemente violadora do princípio da boa-fé objetiva, em seu
sentido de proteção à confiança”, afirmou.
Defeito de
fabricaçãoNo ano passado, a Quarta Turma definiu que,
independentemente de prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por
durável (no caso, máquinas agrícolas) com vida útil inferior àquela que
legitimamente se esperava, além de configurar defeito de adequação (artigo 18 do
Código de Defesa do Consumidor), evidencia quebra da boa-fé objetiva que deve
nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito comum (REsp
984.106).
“Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de
informação e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de
um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais
longo”, concluiu o ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso.
Bem de família em garantiaContraria a boa-fé das relações
negociais o livre oferecimento de imóvel, bem de família, como garantia
hipotecária. Esta é a jurisprudência do STJ. Num dos precedentes, analisado em
2010, a relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, entendeu que o ato
equivalia à entrega de uma garantia que o devedor, desde o início, sabe ser
inexequível, esvaziando-a por completo (REsp 1.141.732).
Por isso, a
Terceira Turma decidiu que o imóvel deve ser descaracterizado como bem de
família e deve ser sujeitado à penhora para satisfação da dívida afiançada. No
caso, um casal figurava como fiador em contrato de compra e venda de uma
papelaria adquirida pelo filho. Os pais garantiram a dívida com a hipoteca do
único imóvel que possuíam e que lhes servia de residência.
Comportamento sinuoso O princípio da boa-fé objetiva já
foi aplicado diversas vezes no STJ no âmbito processual penal. Ao julgar um
habeas corpus (HC 143.414) em dezembro passado, a Sexta Turma não reconheceu a
ocorrência de nulidade decorrente da utilização de prova emprestada num caso de
condenação por tráfico de drogas. Isso porque a própria defesa do réu concordou
com o seu aproveitamento em momento anterior.
A relatora, ministra Maria
Thereza de Assis Moura, lembrou que a relação processual é pautada pelo
princípio da boa-fé objetiva e invocou a proibição de comportamentos
contraditórios. “Tendo em vista o primado em foco, por meio do qual à ordem
jurídica repugna a ideia de comportamentos contraditórios, tendo em vista a
anuência fornecida pela defesa técnica, seria inadequado, num plano mesmo de
eticidade processual, a declaração da nulidade”, concluiu a ministra.
Em
outro caso (HC 206.706), seguindo voto do ministro Og Fernandes, a Sexta Turma
reconheceu haver comportamento contraditório do réu que solicitou com
insistência um encontro com o juiz e, após ser atendido, fora das dependências
do foro, alegou suspeição do magistrado em razão dessa reunião.
Mitigar o prejuízoOutro subprincípio da boa-fé objetiva
foi invocado pela Sexta Turma para negar um habeas corpus (HC 137.549) – o
chamado dever de mitigar a perda (duty to mitigate the loss). No caso, o réu foi
condenado a prestar serviços à comunidade, mas não compareceu ao juízo para dar
início ao cumprimento, porque não foi intimado em razão de o endereço informado
no boletim de ocorrência estar incorreto.
O juízo de execuções ainda
tentou a intimação em endereço constante na Receita Federal e na Justiça
Eleitoral, sem sucesso. Por isso, a pena foi convertida em privativa de
liberdade. A ministra Maria Thereza de Assis Moura, ao analisar a questão,
invocou a boa-fé objetiva. Para ela, a defensoria pública deveria ter informado
ao juízo de primeiro grau o endereço correto do condenado.
“A bem do
dever anexo de colaboração, que deve empolgar a lealdade entre as partes no
processo, cumpriria ao paciente e sua defesa informar ao juízo o endereço, para
que a execução pudesse ter o andamento regular, não se perdendo em inúteis
diligências para a sua localização”, afirmou a magistrada.
Boa-fé da
administraçãoO princípio da boa-fé permeia a Constituição e está
expresso em várias leis regedoras das atividades administrativas, como a
Lei de Licitação, Concessões
e Permissões de Serviço Público e a do Regime Jurídico Único dos Servidores
Públicos.
A doutora em direito administrativo Raquel Urbano de Carvalho
alerta que, se é certo que se exige boa-fé do cidadão ao se relacionar com a
administração, não há dúvida da sua indispensabilidade no tocante ao
comportamento do administrador público.
E quando impõe obrigações a
terceiros, “é fundamental que a administração aja com boa-fé, pondere os
diferentes interesses e considere a realidade a que se destina sua atuação”.
Para a doutrinadora, é direito subjetivo público de qualquer cidadão um mínimo
de segurança no tocante à confiabilidade ético-social das ações dos agentes
estatais.
Desistência de ações A julgar mandado de
segurança impetrado por um policial federal (MS 13.948), a Terceira Seção
decidiu que a conduta da administração atacada no processo ofendeu os princípios
da confiança e da boa-fé objetiva. No caso, o ministro da Justiça exigiu a
desistência de todas as ações antes de analisar os pedidos de apostilamento do
policial e, posteriormente, indeferiu a pretensão ao fundamento de inexistência
de provimento judicial que amparasse a nomeação.
Conforme destacou o
ministro Sebastião Reis Júnior, relator do caso, a atitude impôs prejuízo
irrecuperável ao servidor: “Apesar da incerteza quanto ao resultado dos
requerimentos, o pedido de desistência acarretou a extinção dos processos, com
resolução do mérito, inclusive da demanda que lhe garantia a nomeação ao cargo,
ceifando qualquer possibilidade de o impetrante ter um julgamento favorável,
pois a apelação não havia, ainda, sido julgada.”
Em seu voto, o ministro
ainda destacou doutrina que invoca como justificativa à proteção da boa-fé na
esfera pública a impossibilidade de o estado violar a confiança que a própria
presunção de legitimidade dos atos administrativos traz, agindo contra factum
proprium.
Verbas a título precárioA Lei
8.112/90 prevê a reposição
ao erário do pagamento feito indevidamente ao servidor público. O STJ tem
decidido neste sentido, inclusive, quando os valores são pagos aos servidores em
decorrência de decisão judicial de característica precária ou não definitiva
(REsp 1.263.480).
No julgamento do AREsp 144.877, a Segunda Turma
determinou que um servidor público que recebeu valores indevidos, por conta de
decisão judicial posteriormente cassada, devolvesse o dinheiro à Fazenda
Pública.
Essa regra, contudo, tem sido interpretada pela jurisprudência
com alguns temperamentos, principalmente em decorrência de princípios como a
boa-fé. Sua aplicação, por vezes, tem impedido que valores que foram pagos
indevidamente sejam devolvidos. É o caso, por exemplo, do recebimento de verbas
de boa-fé, por servidores públicos, por força de interpretação errônea, má
aplicação da lei ou erro da administração.
“Objetivamente, a fruição do
que foi recebido indevidamente está acobertada pela boa-fé, que, por sua vez, é
consequência da legítima confiança de que os valores integravam o patrimônio do
beneficiário”, esclareceu o ministro Humberto Martins, no mesmo julgamento.
Processos: REsp 1192678, REsp 1105483, REsp 1073595, Ag 1244022, AREsp
109387, Ag 1378703, REsp 984106, REsp 1141732, HC 143414, HC 206706, HC 137549,
MS 13948, REsp 1263480, AREsp 144877
Fonte: Superior Tribunal de Justiça