Aplicação do princípio da boa-fé objetiva aos contratos de seguro de vida
Emerson Souza Gomes, Advogado.
1. Introdução:
A despeito da presença no ordenamento jurídico da boa-fé objetiva como princípio norteador dos contratos e da caudolosa jurisprudência expendida pelos Tribunais afirmando que a má-fé do segurado, quanto as suas declarações, deve ser robustamente provada, têm, por vezes, empresas seguradoras e subsidiárias de instituições financeiras que operam no ramo securitário, alegado impropriamente o motivo da doença pré-existente como óbice à liquidação da importância segurada no caso do evento morte natural do segurado.
Com fundamento na legislação pertinente, na doutrina e no comportamento jurisprudencial, o presente artigo compila inteligência favorável ao pagamento da indenização avençada, considerando que, nos contratos de seguro onde há por parte da seguradora a dispensa de exame médico prévio, é indiferente para a liquidação da obrigação o estado de saúde do segurado quando da celebração do contrato e sim, a qualidade da sua declaração, ou seja, se de boa ou má-fé.
2. Sobre a boa-fé nos contratos de seguro:
Com o advento da novel legislação civil, iluminada pelo princípio da “eticidade”, a boa-fé passou a ser guia de conduta dos contratantes, obrigando uma conduta arrimada na retidão de proceder, dessumindo-se desta deveres de lealdade e solidarismo, dentre outras virtudes. Aliás, após o Código, a boa-fé passou a ser analisada objetivamente, ou seja, não com base nas qualidades dos contratantes, mas num agir ordinário, no que efetivamente a sociedade espera da conduta do homem médio nos seus negócios habituais.
Consoante a redação do art. 442 “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.”. O laureado Silvio de Salvo Venosa, enfatiza o princípio da boa-fé como dever das partes contratantes: “Coloquialmente, podemos afirmar que esse princípio se estampa pelo dever das partes de agir de forma correta antes, durante e depois do contrato. Isso porque, mesmo após o cumprimento de um contrato, podem sobrar-lhes efeitos residuais.” [1] Especificamente, no que concerne aos Contratos de Seguro, o artigo 765 do Código traça como azimute à conduta dos contratantes a boa-fé: “O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.”
Conforme Cláudia Lima Marques “os contratos de seguro foram responsáveis por uma grande evolução jurisprudencial no sentido de conscientizar-se da necessidade de um direito dos contratos mais social, mais comprometido com a equidade, boa-fé (...).
(...) há de se presumir a boa-fé subjetiva dos consumidores e se impor deveres de boa-fé objetiva (informação, cooperação e cuidado) para os fornecedores, especialmente tendo em conta o modo coletivo de contratação e por adesão.” [2]
Linha esta presente no Código de Proteção e Defesa do Consumidor que literalmente, alça a boa-fé como princípio norteador da política nacional de relações de consumo, precisamente no seu art 4º, III. Em comento ao dispositivo, ainda na letra de Cláudia Lima Marques: “Poderíamos afirmar genericamente que a boa-fé é o princípio máximo orientador do CDC;” [3]
Denote-se que a doutrina colabora para que, primordialmente, presuma-se a boa-fé do consumidor. Vejamos ainda: “As linhas de interpretação asseguradas pela jurisprudência brasileira aos consumidores em matéria de seguros são um bom exemplo da implementação de uma tutela especial para aquele contratante em posição mais vulnerável na relação contratual, antes e depois da entrada em vigor do CDC. Aqui há de se presumir a boa-fé subjetiva dos consumidores e se impor deveres de boa-fé objetiva (informação, cooperação e cuidado) para os fornecedores, especialmente tendo em conta o modo coletivo de contratação e por adesão.” [4]
Bem assim, oportuna a letra do tratadista Arnaldo Rizzardo, que em sua obra “Contratos”, acentua: “Mas não basta a mera constatação de um fato não revelado para desvincular do encargo de indenizar. A má-fé deverá ficar provada, ônus que incumbe ao segurador. Interpreta-se em favor do segurado a avença em casos de dúvidas e omissões. E se o segurado, ao fazer as declarações, não obrou de má-fé, subsiste a obrigação da indenização”.
Ademais, justifica o tratadista: “É que a seguradora se apóia nas perspectivas favoráveis que resultam das previsões atuariais. Sabe, de antemão que, entre os segurados, dispensada a cautela do exame médico, poderá haver alguns doentes e até gravemente enfermos. O risco, todavia, é coberto com largueza pela vantagem proveniente do grande número de segurados que aderem ao sistema de seguro, e não padecem o infortúnio. Constituem dados de presunção de que a seguradora, voluntariamente, dispensa o exame e aceita o risco: a idade do segurado, a profissão, o regime e a espécie de trabalho exercida, e a compleição física e mental. [5]”
Assim, em sintonia legislação e doutrina asseveram a boa-fé contratual como princípio norteador, tanto das relações consumeirista, como das demais relações privadas, evidenciando o dever da seguradora de comprovar a má-fé do segurado quando da contratação do seguro.
Sobretudo, inteligência conectada à presunção de inocência, disposta no art.5º da Constituição Federal.
3. Sobre o comportamento jurisprudencial:
Não diferente tem sido o entendimento dos Tribunais. Em arestos colacionados adiante, no espírito e letra da novel legislação privada e do Código do Consumidor, verifica-se que a seguradora somente se vê desobrigada a adimplir ao pacto no caso de comprovada a má-fé do contratante.
“12154 - SEGURO DE VIDA - Prescrição. Doença preexistente. Má-fé. Ônus da prova. Art. 585, III, do CPC. O contrato de seguro é título executivo extrajudicial, consoante o art. 585, III, do CPC. O art. 178, § 6º, II, do CC regula o prazo prescricional apenas da ação do segurado e vice-versa, não sendo lícito aplicar-se o mesmo preceito aos beneficiários do seguro. É vedado à seguradora recusar-se ao pagamento do valor da apólice de seguro de vida sob alegação de doença preexistente, se não comprovar a má-fé do contratante, consubstanciada em declarações inverídicas quanto a seu estado de saúde, hipótese em que inaplicável o art. 1.444 do CC.” (TAMG - AC 226.398-9 - 7ª C - Rel. Juiz Lauro Bracarense - DJMG 24.05.97)
“Se não demonstrado convincentemente ter o segurado agido de má-fé ou que a omissão, ao prestar informações, foi intencional, o contrato é válido, devendo a seguradora efetuar o pagamento do benefício. Dispensando a seguradora, no contrato, exame médico, há que se crer na palavra do segurado, cabendo àquelas provar a má-fé deste. Em caso de dúvida, resolve-se em favor do segurado” (JC 72/395)” (AC n. 97.015052-0, de Blumenau, relator: Desembargador Anselmo Cerello).
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) pacifica a questão, configurando como omissa a conduta da seguradora que não exige exame para admissão de segurado.
“Seguro-saúde – Doença preexistente – AIDS. Omissa a seguradora tocante à sua obrigação de efetuar exame de admissão do segurado, cabe-lhe responder pela integralidade das despesas médico-hospitalares havidas com a internação do paciente, sendo inoperante a cláusula restritiva inserta no contrato de seguro-saúde. Recurso conhecido em parte e parcialmente provido.” (STJ, Resp 234219/SP, 4ª Turma, Rel. Min.Ruy Rosado de Aguiar, j.15/05/2001) e Resp 300215/MG, 4ª Turma, Rel. Min.Aldir Passarinho Junior, j.29.05.2001, fonte: Cláudia Lima Marques in Contratos no Código de Defesa do Consumidor, O novo regime das relações contratuais, 4ª edição, 2..002, editora Revista dos Tribunais, pág. 394)
Destarte, no tocante à conduta da seguradora em após ter firmado o pacto, obstaculizar-se ao pagamento da importância segurada deduzindo doença preexistente ou defeito na declaração do segurado, cabe ainda a nota da doutrina que assevera: “o direito contratual passa a realizar um controle da liberdade contratual, controle da liberdade do mais forte, proteção da liberdade do outro, do contratante mais fraco; controle sempre baseado nos princípios maiores da boa-fé objetiva e da necessária proteção da confiança na sociedade de consumo [6].”
Nesta proteção, em a seguradora se subtraindo ao pagamento da indenização, mesmo tendo aceitado os riscos da omissão, não exigindo exames prévios de saúde, denota-se agressão à confiança mediana, conquanto ao fornecedor não é facultado propiciar surpresas ao consumidor.
Cumpre assim concluir que, mesmo que preexistente, porém desconhecido o mal que adveio ao segurado, não tem a seguradora o direito de escusar-se ao cumprimento da prestação, posto que relevante à lei não é o estado material do segurado ao tempo do contrato e sim, a qualidade da sua declaração, ou seja, se de boa ou má-fé. Anote-se: "Havendo boa-fé quando da contratação do seguro, ainda que a enfermidade seja preexistente, a cobertura do risco pela seguradora é conseqüência do contrato" [7]
Bem assim, eventuais diligências do segurado para o cuidado da saúde, não autorizam igualmente o não pagamento da importância segurada, muito menos ainda, podem configurar a má-fé do segurado quando da contratação do seguro.
A jurisprudência acompanha a inteligência:
“Seguro de vida em grupo – Falecimento do segurado – Se o segurado foi submetido a tratamento especializado, um dia após a contratação do seguro, tal fato por si só, não significa que o mesmo tenha agido com má-fé, ao subscrever a proposta de renovação do seguro de vida em grupo, como vinha fazendo durante longos anos. A data em que ocorreria o evento morte era incerta; além do mais, a doença se instalara no organismo do segurado em data bem anterior, na vigência de algum dos contratos de seguro que celebrou. E a má-fé não pode ser presumida, mesmo em se tratando de um contrato de seguro. Portanto, deve a seguradora arcar com o pagamento da indenização correspondente ao seguro, pois durante longos anos recebeu o prêmio e assumiu o risco pelo pagamento.” (1º TACSP – 2ª C. – Ap. Rel. Alberto Tedesco – j.03.08.94 – RT 715/170, fonte: Rui Stoco in Responsabilidade Civil e sua interpretação Jurisprudencial, 3ª edição, revista e ampliada, editora Revista dos Tribunais, pág.258)
“Seguro de vida – Perda do direito – Inadmissibilidade – Morte decorrente de cirurgia cardíaca – Seguradora que alega que o segurado era portador de moléstia grave quando da assinatura da proposta, por ter-se submetido pouco tempo antes a exame de coronária e coração. Cateterismo que constitui exame para diagnóstico e não síndrome – Segurado, ademais que levava vida ativa – Má-fé não caracterizada – Verba devida – (...)” (1º TACSP – 4 C.Esp. – Rel.Roberto Mendes de Freitas – j.31.1.94 – RT 715/170, fonte: Rui Stoco in Responsabilidade Civil e sua interpretação Jurisprudencial, 3ª edição, revista e ampliada, editora Revista dos Tribunais, pág.253)
4. Conclusões:
Do alinhado, havendo contratação de seguro de vida, com dispensa de exame médico prévio, constata-se evidente o direito do beneficiário do seguro em haver da seguradora o valor contratado como importância segurada para o evento morte natural, sendo independente uma apreciação do estado de saúde do segurado no ato da contratação, importando tão somente a qualidade da sua declaração, como já fixado, se de boa ou má-fé.
Consoante a jurisprudência e a doutrina, cabe à seguradora a prova de má-fé do segurado quando da contratação do seguro, sobretudo, em função da presunção constitucional de inocência.
Por último, a má-fé deve restar evidenciada de forma contundente, não importando como prova de má-fé, diligências do segurado para cuidados da sua saúde.
[1] www.societario.com.br
[2] Claudia Lima Marques in Contratos do Código de Defesa do Consumidor, o novo regime das relações contratuais, 4ª edição. Editora Revista dos Tribunais, 2.002, p. 394
[3] Cláudia Lima Marques in Contratos no Código de Defesa do Consumidor, O novo regime das relações contratuais, 4ª edição, 2..002, editora Revista dos Tribunais, pág. 671
[4] Cláudia Lima Marques in Contratos no Código de Defesa do Consumidor, O novo regime das relações contratuais, 4ª edição, 2..002, editora Revista dos Tribunais, pág. 394 e 395
[5] Arnaldo Rizzardo in Contratos, 2ª edição, editora Forense, 2001, p.546
[6] Cláudia Lima Marques in Contratos no Código de Defesa do Consumidor, O novo regime das relações contratuais, 4ª edição, 2..002, editora Revista dos Tribunais, pág. 593
[7] Revista Jurisprudência Mineira, v. 36, p. 227-232.
Fonte: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/view/24428/23991
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